quarta-feira, 26 de março de 2008

HENRICÃO

SEGUE ABAIXO O TEXTO DA CONTRA-CAPA DO DISCO DO HENRICÃO, LANÇADO EM 80...
GRANDE SAMBISTA DE SÃO PAULO!!!

"Na recente visita do papa ao Brasil, milhões de pessoas – em diversas ocasiões, em diferentes pontas do País – se despediram de João Paulo II cantando “Está chegando a hora”. Eles estavam apenas repetindo um hábito que já se tornou tradicional, entre nós, nas grandes comemorações futebolísticas e nos finais de bons bailes. E mal sabiam que o responsável por esse sucesso carnavalesco, Henrique Felipe da Costa, estava naquele mesmo início de julho reiniciando sua carreira artística gravando este disco. Desde 1956 Henricão – compositor também de outros sucessos como “Casinha da Marambaia” e “Carmelito” – não gravava.

O ostracismo estava deixando o veterano sambista “cheio de tristezas”. Afinal, no carnaval deste ano a Vai-Vai, escola de samba mais popular de São Paulo, que ele ajudara a fundar, comemorava 50 anos de existência oficial, mas Henricão não tinha sido convidado sequer para assistir um ensaio na quadra do Bixiga. Outro aborrecimento era a falta de notícia da cantora com quem formara famosa dupla nos anos 30 e 40. Por onde andaria aquela Carmelita Madriaga, a moça que tirou ele de um programa de calouros, transformou em sua parceira de palco, batizou com o nome artístico “Carmem Costa” e deu de presente para a música popular brasileira?

Fui encontrá-lo assim, com essas inquietações, no início de 1980. A minha missão era escrever uma reportagem sobre a Vai-Vai para o Jornal da Tarde. Por indicação do fotógrafo e pesquisador musical Dirceu Leme, localizei Henricão trabalhando numa casa de carros usados da “boca” da rua Helvetia, no decadente Campos Elíseos. E morando num apartamentinho entre armazéns de transportadores no Pari.

Henricão, com seus 150 quilos, é um sujeito forte para quem está com 72 anos. Uma idade que não o impedia, naquela época, de fazer muitos projetos. Um deles: gravar de novo um disco. Só que este desejo tinha uma barreira: o desdém com que os produtores de algumas gravadoras o recebiam.O que era uma injustiça não só para ele, mas também para a nossa música, que ficaria sem um documento digno da produção que ele realizou. Senti que o samba precisava de ajuda.

A mágoa com a Vai-Vai era tão forte que ele nem quis aceitar o convite para assistirmos juntos o carnaval na Avenida Tiradentes. Por sorte, em fevereiro, a Carmem Costa estava fazendo uma temporada na cidade, no “Ópera Cabaret”, do Bexiga. Levei o Henricão até lá. Foi um reencontro memorável. Carmem chamou o antigo companheiro ao palco e, de improviso, eles cantaram e dançaram alguns velhos sucessos da dupla. O público delirou, gostou de ver aquele negrão de cabelos e cavanhaque brancos, sambando com muita facilidade e meio encantado... como seu sorriso todo branco deixava perceber. Até parecia que os bons tempos tinham voltado: o gerente da casa contratou Henricão para terminar a temporada com Carmem.

Dias depois, ele estaria falando, por indicação minha, com Aluízio Falcão, da rádio e estúdio Eldorado. O Henricão cativou Aluízio logo de cara. Primeiro ele gravou um programa para a rádio, em que cantou e fez um depoimento. Recordou seu passado, como o dia em que saiu de Itapira, trazido para São Paulo por um comerciante corintiano que se entusiasmou ao vê-lo joga no gol do time local. O homem queria que aquele rapaz negro jogasse no Corinthians, mas em São Paulo o moço interiorano gostou mais das gafieiras. E logo estaria cantando em rádios. Um dia se aventurou, foi para o Rio. Lá a sua estrela artística começou a brilhar, especialmente a partir do momento em que Ataulfo Alves lhe apresentou a futura Carmem Costa. Excursionou pelo País, escreveu mais de cem músicas, conheceu o sucesso. Trabalhou, também, como ator, em teatro, cinema e televisão. Ganhou prêmios... No programa da rádio, ele contou tudo em detalhes.

Passaram-se algumas semanas até que Henricão fosse chamado de volta à Eldorado, desta vez para tomar conhecimento de que seu disco, o tão esperado disco, seria feito. Ao receber a notícia, ele chorou convulsivamente. “Coloquei todas as tristezas para fora”, diria depois. E voltaria a chorar durante a gravação, fazendo o seu gorro de lenço. No estúdio, encontrou fãs e fez amigos. Um deles, o Edson José Alves, filho de Juci, antigo integrante do “Rago e seu regional”, que acompanhou Henricão no auge de sua carreira. O sambista se comoveu com a dedicação de Edson nos arranjos e, especialmente, quando o acompanhou, com um violão de cordas de aço em “O Som dos Carrilhões”. A música é um imortal choro de João Pernambuco, no qual Henricão colocou letra, agora pela primeira vez gravada.

Todas as músicas deste disco foram escolhidas pelo próprio compositor e cantor. Tudo foi feito de maneira natural, que é a própria maneira se ser de Henricão. Um tipo de gente que hoje é rara. Sincero, sensível, simples. Como é também a sua música, pois ela não passa do retrato do seu dia-a-dia. A história dos amores perdidos, dos fatos observados na rua. A crioula que ele esperava debaixo do relógio da praça da Sé deu mancada? Não tem importância, isto lhe inspirou um samba. Aquela outra o abandonou, magoando-o muito? De seu coração surgiu “Sou Eu”, que Paulo Vanzolini considera um dos melhores sambas paulistas. Certa vez, durante uma festa pública em Pernambuco, viu que a platéia gostava muito de cantar “Cielito Lindo”, uma música mexicana. Aproveitou, escreveu nova letra para ela, transformando-a num samba de respeito, a tempo de apresentá-lo durante a festa. Assim nasceu a sempre cantada “Está chegando a hora”. Outra vez, num bar, teve a idéia de compor “Casinha da Marambaia” ao escutar a conversa de dois aspirantes a fuzileiros navais...

Seu companheiro na maioria das composições é outro paulista, Rubens Campos, que um dia também foi pro Rio. Certa ocasião, eles estavam na Praça Tiradentes, sentados, e um bando de andorinhas sobrevoava o local com insistência. Indo e vindo. Mas uma das aves, notou Henricão, não se misturava com as outras, voava sempre mais atrás um pouquinho. Ele disse ao amigo: isso dá música. O Rubens brincou: “O, Henricão, você de tudo quer fazer música!”. Ele não se incomodou. No dia seguinte iria ao escritório de despachante do parceiro apresentar-lhe os primeiros versos da marcha-rancho “Andorinha”. Até sua sobrinha Dedé ajudou na composição.

Para que essa música fosse incluída no disco, foi preciso arranjar um bombardino, instrumento hoje em desuso. Era a vontade do sambista e assim foi feito. Da mesma forma como se organizou um “regional”, coisa que não se usa mais em gravações, para acompanhá-lo. Esse acompanhamento foi intencionalmente despojado, de modo que a voz de Henricão fosse registrada com clareza. Respeitou-se também o seu modo de falar. Assim como o seu desejo e gravar com Carmem – e ela está nas faixas “Carmelito” e “Está chegando a hora”. Henricão está satisfeito, acha que capricharam mesmo, diz que agora já pode morrer em paz... se bem que, pensando melhor logo em seguida ele diz que isto é apenas o recomeço. E sorri seu branco sorrisão, amigo, infantil, contagiante. Humano."
Júlio Moreno - Outubro de 1980
(texto do LP original, lançado em 1980)

FONTE: ocourodocabrito.blogstpot.com

Nenhum comentário: